Maria de Lurdes Rodrigues assumiu, na Grande Entrevista, desvalorizar as faltas às aulas ao desconectar assiduidade e avaliação: "A avaliação tem que incidir sobre o conhecimento: sabe, passa; não sabe, não passa". Independentemente da falta de assiduidade ou da conduta indisciplinada do aluno nas aulas.
O regime de faltas dos alunos contido no projecto para o novo Estatuto do Aluno, para aprovação na Assembleia da República, tem gerado muita controvérsia, que não vai ficar por aqui. Por mais explicações que sejam dadas, por melhores que sejam as intenções, uma coisa é certa: passa um sinal de balda e facilitismo para a sociedade.
Quarta-feira passada, na Grande Entrevista (Canal 1), a ministra da Educação não esclareceu o assunto. Chamou de demagógicos aqueles que argumentam haver facilitismo no novo Estatuto do Aluno, mas não falou claro e não provou o contrário («Maria de Lurdes Rodrigues [...] não foi clara sobre o alcance das novas regras», escreveu o Público no dia seguinte). Não explicou, com base no articulado da lei, de que forma o novo estatuto permite aos professores, como disse, agir, actuar e disciplinar, ao contrário do anterior estatuto, que, supostamente, impedia os mesmos professores de agir.
Apenas falou de generalidades e questões de princípio, como a maior responsabilização dos pais e alunos e da devolução da autoridade aos professores e às escolas. Não disse como isso acontece na realidade concreta. Chutou para canto dizendo que são os docentes e as escolas que têm de definir, nomeadamente em Regulamento Interno, o que fazer na sequência do novo regime de faltas do Estatuto do Aluno. Se é para as escolas decidirem, como se explica que o Estatuto do Aluno as obrigue a fazer provas para os absentistas? Há um condicionamento prévio.
Fugiu das questões da jornalista dizendo que os exemplos que dava eram caricaturas. Por exemplo, o que acontece ao aluno que falta sempre às aulas e faz a prova e passa? Sem resposta.
Parece que a ministra não conhece as escolas. Diz que agora as escolas vão apostar na prevenção dos comportamentos em vez do castigo pela falta de assiduidade. Parte do pressuposto que isso não acontece hoje de forma generalizada. Que os directores de turma e as escolas deixam os meninos faltar sem dar conhecimento aos pais nem tentarem prevenir a situação. Que só punem com expulsão assim que ultrapassam o limite de faltas. Que não comunicam com alunos e encarregados de educação. Que só reprimem e não actuam preventivamente. É falso.
Disse que, com o estatuto actual, os pais não eram interpelados sobre o que estava a acontecer. Que os pais eram apenas informados e que nada decorria daí. Falso. Diz que agora a escola pode castigar quem falta. Que até aqui não havia penalizações. Falso.
Ora, o que se está a fazer é:
1. Colocar o ónus basicamente na escola e nos professores, ao dizer-se que a solução para o absentismo é a escola fazer as provas (e repeti-las se necessário) para substituir a presença nas aulas (bem como substituir a responsabilidade das famílias).
O resto está dependente da atitude do aluno e da família, o que está fora do controlo exclusivo da escola. A escola pode, tem e deve ter sempre uma acção preventiva e de sensibilização junto destes actores, ou de encaminhamento dos casos para técnicos sociais ou psicólogos consoante as situações. Mas isso já podia fazer e já faz. Os pais já eram interpelados. Poder-se-á fazer melhor? É sempre possível fazer melhor, naquilo que cabe à escola. A escola não deve nem tem meios para assumir as responsabilidades de outros.
2. Dar um sinal de desresponsabilização a alunos e famílias, porque a escola é que tem de resolver o problema como uma prova de recuperação, para solucionar e cobrir o absentismo. A prova pode ser encarada como uma saída fácil, relativizando-se o problema do absentismo e o valor da assiduidade e do trabalho de aprendizagem diário nas aulas.
3. Mascarar o abandono e insucesso escolar, valorizando o passar de ano e desvalorizando as aprendizagens efectivas que acontecem no trabalho em espaço de aula. O que se quer é os meninos "na escola" sem lá ir, ou melhor, indo lá para a prova de recuperação.
Já antes houve medidas para mascarar o insucesso escolar como o aluno poder transitar com três notas negativas, em vez de proporcionar o acompanhamento extra preventivo e/ou remediação, para que ganhasse as competências e não escorregasse para o insucesso ou ficasse retido. Fica mais barato assim, mas a qualidade das aprendizagens e as competências e os conhecimentos efectivos dos portugueses não melhoram. Se a avaliação fosse das competências reais, as notas ainda seriam piores. E a produtividade do país é o que se vê.
5. Desvalorizar a avaliação contínua, no dia a dia, para valorizar a avaliação circunstancial numa prova chamada de recuperação (avaliação sumativa), ao ponto de compensar a ausência do trabalho de aprendizagem nas aulas, como se a prova ensinasse e nela se aprendesse o que não se aprendeu nas aulas. Como se recuperar o que não se aprendeu ao longo de semanas pudesse ser resposto (recuperado) por uma prova...
6. Valorizar o conhecer (saber teórico), que se deposita numa prova escrita, em detrimento do fazer (saber prático e das competências). Vão surgir ainda explicadores e manuais especializados em fazer memorizar a teoria necessária para passar nas provas de recuperação do absentismo...
7. Estimular e valorizar a burocracia: aumenta-se o número de actos que exigem formalização, que vai aumentar as perdas e desviar os professores e as escolas do trabalho nuclear, o trabalho pedagógico e as aprendizagens, para mais burocracia capaz de encobrir o absentismo, que é uma responsabilidade do aluno e da família.
8. Desvalorizar as faltas às aulas ao desconectar assiduidade e avaliação: "A avaliação tem que incidir sobre o conhecimento: sabe, passa; não sabe, não passa". Independentemente da falta de assiduidade ou da conduta indisciplinada do aluno nas aulas.
A ministra diz que o importante é que passe quem sabe. Mesmo que não compareça às aulas. Parte do pressuposto que as aulas são irrelevantes e completamente dispensáveis para a aquisição de saberes e competências.
Diz que o importante é desconectar o castigo (pelo absentismo) da avaliação. Não dá conta que está a introduzir o vale tudo desde que se saiba a matéria. Como se saber dispensasse as regras. Se eu sei, posso deixar de ir às aulas; se eu sei, posso ser indisciplinado; se eu sei, posso bater no professor; e por aí adiante.
Ao desconectar a sanção (por absentismo) da avaliação, não percebe a ministra que está a desconectar, simultaneamente, o trabalho dos alunos nas aulas e o sucesso escolar (formalizado no passar de ano). O valor do trabalho e do esforço é secundário. Basta saber para passar na prova de recuperação.
A ministra aprofundou a tese e afirmou, na mesma entrevista, não concordar que o aluno indisciplinado, que sabe os conteúdos, devesse ser penalizado, na avaliação, pela sua indisciplina. Disse ainda que o aluno disciplinado que não sabe não deveria ser favorecido na avaliação (classificação). Isto é, as atitudes e valores não interessam ou interessam muito pouco. Vale o que se sabe e de nada vale o que se é como pessoa, numa comunidade de aprendizagem (e de educação) como é a escola.
Isto é inabilidade e uma baralhada tal que justifica por si só a demissão de Maria de Lurdes Rodrigues. Até onde se vai para mascarar as estatísticas do insucesso escolar...
Significa ainda que quer desconectar o absentismo da consequência: da consequência da não aquisição de conhecimentos e/ou de competências; da consequência da sanção; enfim, de qualquer consequência. Desde que as estatísticas melhorem para salvar a imagem da política educativa deste Governo... cuja marca é o ataque aos professores.
Os alunos absentistas e as famílias que cobrem essa irresponsabilidade dos seus filhos podem relaxar mais um pouco: há sempre mais uma oportunidade para quem não é disciplinado, não trabalha, não vai às aulas - agora até vem uma prova de recuperação, com direito a repetição...
As intenções, como dissemos, podem ser as melhores, mas a ministra da Educação e o Governo estão equivocados. Se o que parece - objectivo de mascarar, administrativamente, as estatísticas de abandono e de insucesso escolar - não é, há no mínimo um equívoco. Não esquecendo que em política o que parece é...
Uma coisa é o idealismo da intenção, como é partir do pressuposto que todas as famílias actuam, orientam e disciplinam (educam) as suas crianças e jovens, no sentido da responsabilidade e autodeterminação no que toca a deveres, atitudes e comportamentos. Outra coisa é lidar com a realidade e ser-se prático (racional e realista) na acção, tanto preventiva como sancionatória, relativamente à ausência do aluno da actividade lectiva e de aprendizagem. O idealismo pode ser também demagógico.
Infelizmente, a realidade demonstra que problemas como o absentismo ou a indisciplina escolares não se resolvem apenas com prevenção. Muito menos só com boas intenções, bondade e paninhos quentes até à exaustão. Há situações prementes que precisam de actuação no momento com recurso à sanção e à penalização, se necessário, depois de esgotadas as vias do diálogo e das medidas preventivas.
Como nem tudo se resolve, infelizmente, com advertências, medidas preventivas e conversas até ao infinito, a infracção das regras tem de ter consequência, senão passa-se a ideia de impunidade, permissividade e laxismo, bem ao jeito dos nossos brandos costumes e do "deixa andar". E a vida não é assim. Se a via do diálogo e da sensibilização é esgotada e não funciona, é preciso resolver e actuar por outros meios.
Sobretudo numa sociedade como a portuguesa, indisciplinada (incivilizada) e pouco autodeterminada nos comportamentos sociais, é preciso haver consequência imposta do exterior, senão ninguém leva nada a sério. Os acidentes nas estradas portuguesas só diminuem com medidas de repressão.
Gastaram-se quantias enormes em campanhas de prevenção que pouco resultado tiveram. Imagine-se que, em vez de multas às infracções os polícias passassem a penalizar os condutores (alguns deles autênticos homicidas) com uma conversa de sensibilização... A sanção também é precisa, em especial nas situações limite. A prevenção não resolve tudo. A não ser que se vivesse num conto de fadas.
domingo, novembro 25, 2007
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