segunda-feira, março 16, 2009

State of the undiscipline address

Uma injecção de realidade dedicada aos colegas Maurício e Irene, que a indisciplina e a violência psicológica na escola os empurraram para fora do ensino, prematuramente.
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Lamentamos…

1. A normalização da cultura de laxismo e facilitismo, isto é, da atitude negativa perante o trabalho intelectual e perante a disciplina na sala de aula, bem como a justificação da irresponsabilidade individual pela origem social, o nível socio-económico ou contingências da vida.

2. Que esteja tudo montado, de cima a baixo, para não haver disciplina, como é exemplo flagrante a burocratização da acção disciplinar, geradora de mais papéis e convocação de recursos humanos, do que actuação concreta e eficaz: os nossos brandos costumes continuam a vingar nos corredores da escola. Pouco interessa o que o aluno faz, desde que esteja na sala de aula.

3. Que a violência bruta e directa como danificar material da escola, tomar álcool, chamar nomes ou agredir outrem seja considerada mais grave (violenta) e dê direito a suspensão, mas que a «outra violência, porque mais subtil, mais pela calada, mais insidiosa e “normal”» (Alice Vieira: JN 9.12.2007 ), passe impune: é o não saber viver em comunidade, a ameaça, o nenhum interesse pelo que se passa dentro da sala, a provocação constante, o falar alto e repetidamente apesar de advertido vezes sem conta, o uso de palavrões, a recusa a realizar as tarefas da aula, desobediência às indicações do docente, afrontar o professor quando este toma medidas disciplinares, a obstaculização do processo de ensino-aprendizagem ou a violação do direito que os outros alunos têm a uma aprendizagem decente de forma reiterada, com consequências colectivas, mas sem consequências significativas. Como é uma zona de acção sem lei, sem consequência relevante, são os alunos que mandam - determinam o ritmo, o clima e a qualidade da aula. «E não há nada pior do que a normalização, do que a banalização da violência», disse a mesma Alice Vieira.

4. Que a disciplina e a cultura de trabalho não sejam encaradas e exigidas como premissas básicas a serem observadas pelos estudantes no processo de ensino-aprendizagem, obrigando o professor a um braço de ferro todos os dias, em cada aula e a cada momento da aula para impor, à força, essas condições.

5. Que não se dê conta da contradição entre a ausência de condições de trabalho nas salas de aulas, para um bom decorrer do processo de ensino-aprendizagem, e a exigência para o professor apresentar resultados escolares por parte dos alunos.

6. Que quem não actua na sala de aula com agressividade, com gritos, com marcação homem a homem, seja encarado, na nossa cultura, como sinal de fraqueza. O que não diria Gandhi, esse expoente da estratégia da não-violência… «Não existe um caminho para paz! A paz é o caminho!"»

7. Que um conjunto claro e sucinto de regras não estejam institucionalizadas, como o respeito pelo professor, como condição prévia, independentemente de ser mais magro ou mais gordo, mais “general” ou mais democrático, para que se liberte o agente de ensino para a relação pedagógica saudável, para a tal «paz» como «caminho», que é dificultada quando cabe apenas ao professor impor as regras na sala de aula, um caminho aberto para gerar conflitos entre professores e alunos, já que recai sobre o docente o ónus e o odioso (o prejuízo, a personificação do “mal”) dessa imposição das regras – como se as regras saíssem da cabeça de cada professor, sem enquadramento e suporte social e institucional.

8. O entendimento que a generalização da receita “marcação professor-aluno” ou “professor estilo touro enraivecido face a qualquer movimento na arena ” é a solução para o estado de indisciplina que se vive, quando tal actuação, que apenas resolve momentaneamente os sintomas, numa estratégia de sobrevivência, não actua sobre as causas, não muda a mentalidade e atitude cultural dos estudantes, não torna a escola num espaço onde as pessoas possam respirar e crescer, faz da escola um local de hostilidade, não perdura, funciona só quando a autoridade está a controlar em presença, gera paus-mandados, não garante nem tem nada a ver com o ambiente (saudável) necessário para o decorrer do processo de ensino-aprendizagem, não estimula a autonomia e a responsabilidade individuais dos jovens estudantes, não melhora os resultados da escola. Acaba tudo por cair em cima da escola e na sua imagem.

9. Que se espere do professor que se imponha, com violência, para equilibrar a realeza individual de estudantes sem civismo, incapazes de comportamento auto-determinado ou do cumprimento de deveres básicos como o dever de respeito pelo direito à aprendizagem dos outros alunos, consignado em lei, e não se prevejam as consequências perversas, na formação da juventude, de um ensino feito à base de professores-generais, de marcação cerrada, ou de professores-cowboys, disparando contra tudo o que se mexa, com elevado desgaste pessoal. Mais fácil para quem não tem um horário com vinte e duas horas lectivas.

10. O discurso, assente num mito, de que a disciplina na escola e na sala de aula está apenas dependente do professor, sobretudo quando é deixado sozinho - sem autoridade, sem base para a acção disciplinar, num ambiente de impunidade. «Os professores são deixados sozinhos e sem meios sobre a indisciplina crescente» diz Daniel Sampaio (revista Pública 4.1.2009).

11. A outra ideia cómoda, mas igualmente utópica, de que a pedagogia e o professor podem, por milagre, fazer aprender quem não trabalha, não estuda, não valoriza o saber.

12. Ainda outra ideia ilusória de que, se o conselho de turma se puser de acordo quanto ao uso do barrete e da pastilha elástica na sala de aula, tudo se resolve, de novo, no estrito campo de acção do professor.

13. Que não se valorize o «risco [que] é evidente: se não valorizarmos o pequeno incidente de indisciplina, se não respondermos de imediato com medidas correctivas de responsabilização, a desordem cresce dia após dia. Sabe-se hoje que a degradação do clima na escola progride por estádios, desde a recusa de regras na turma e pouco trabalho, até actos graves de delinquência (agressão a professores, destruição de material escolar), com etapas intermédias de pequenos delitos, comportamentos provocatórios e desafios à autoridade que denunciam uma violência latente.» (Daniel Sampaio: revista Pública 4.1.2009)

14. Que a indisciplina impeça ou condicione, ainda, a opção por determinadas estratégias pedagógicas estimuladoras da autonomia, do aprender fazendo, do raciocínio, da responsabilidade, do trabalho.

15. Que o professor tenha de despender o tempo que deveria ser para apoio individualizado e para a diferenciação pedagógica, na sala de aula, em actos de policiamento e controlo.

16. Que enquanto noutras culturas europeias (para nem falar nas culturas orientais ou da Europa de Leste) ser um aluno preguiçoso, indisciplinado e de insucesso é uma vergonha, no nosso meio é aceitável e até popular. Que conhecer e saber seja tão desvalorizado.

17. Que o rigor, a disciplina e o esforço pessoais continuem a ser conotados com valores fascistas pelos complexos ideológicos do pós-25 de Abril de 1974, mas se dê tanto espaço à ditadura da indisciplina.

18. Que se discipline mais os docentes e funcionários do que os alunos-REI, deixados num limbo de irresponsabilidade e impunidade, caminho aberto para as mais diversas pulsões narcisistas e exibicionistas.

19. Que se limite a atirar as culpas para os pais, com a ideia utópica de querer mudar os pais a partir da escola quando nem se consegue mudar e disciplinar os estudantes, que estão todos os dias dentro da escola.

20. Que se ignore a realidade como esta proferida por Medina Carreira: «com gente indisciplinada, pode (até) levar para lá um professor catedrático. O professor catedrático não ensina nada porque eles não deixam ensinar.» (SIC 3 de Julho de 2008)

21. Que seja anti-pedagógico encaminhar um aluno para a biblioteca realizar tarefas escolares, mas seja encarado como normal e pedagógico a obstaculização da aprendizagem dos outros estudantes por esse mesmo aluno.

22. Que se chegue ao ponto de desconfiar da justeza das comunicações e participações disciplinares feitas pelos docentes, mais um acto grave de desautorização, como se o professor não fosse uma pessoa de bem, de boa fé ou de confiança.

23. Que o corpo docente não seja mais solidário e corporativo nas questões da indisciplina, remetendo-se muitos ao silêncio (isolamento ou optando pela ilusória companhia de ansiolíticos) em vez de expor a realidade nos lugares próprios como os grupos disciplinares, departamentos curriculares e conselhos de turma.

Nélio de Sousa, Calheta, 30 de Janeiro de 2009.

O conteúdo exposto pelo docente nélio sousa foi subscrito, até ao momento, por todo o conselho de turma da turma quatro do sétimo ano, da turma um do quinto ano e da turma dois do nono ano.

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