«Respeito, modos e brio. A ordem podia ser outra e as palavras também, mas esta era a essência, o âmago da ideia de educação da minha mãe. E, em questões de disciplina, não houve, não havia cedências até porque o olhar, aquele olhar, parava birras e afogava o orgulho em revoltas mudas. Mesmo quando parecia distraída e o caso menor, o juízo da minha mãe chegava duro e exemplar, cortava a direito na insolência e impunha regras.
Pequena, frágil, cabelos grisalhos, o olhar habitava a casa, dele dependia tudo e, sem exagero, enxergava os tumultos e as dúvidas da adolescência, as crueldades da infância e, além de tudo, a nossa natureza, as sombras e o brilho dos nossos talentos. Os seus braços acolhiam as dores de dentes, as febres, o medo do escuro e a incerteza do futuro, mas fechavam-se às nossas faltas.
Numa festa, quando se pulava muito ou excedia na laranjada, os olhos chispavam e, em casa, de orelha caída, ouvíamos a reprimenda. Sem uma hesitação, era claro que à mesa e em frente de estranhos contavam as maneiras, não se comia como se não houvesse amanhã, nem as cortinas eram guardanapos. Não se troçava das ordens, não havia desobediência, essa era a diferença entre uma família e os 'garotos do calhau'.
Os 'garotos do calhau' - a expressão máxima da falta de respeito - eram o limite ao qual a minha mãe comparava tudo, pelo menos tudo o que o meu irmão e eu fazíamos de mal. Se levantávamos o nariz para ripostar a ordens, se nos esquecíamos de lavar os dentes e as mãos, se insistíamos em usar roupa velha ou nos recusávamos a tomar banho e a pentear o cabelo. O que acontecia algumas vezes, o meu irmão refugiava-se na ameixeira e eu fugia quanto podia da escova.
O olhar corria-nos de alto a baixo antes de sair de casa e continuava presente no autocarro quando íamos às compras ou ao médico, mantinha-se nas lojas, evitava birras e fazia-nos engolir as lágrimas pelos carrinhos e bonecas das montras. E estava de guarda quando, cruéis, nos ríamos de alguém diferente, de um colega mais fraco ou mais pobre. Se éramos todos iguais aos olhos de Deus, a arrogância castigava-se com um beliscão bem puxado.
Crescer com o olhar da minha mãe não foi fácil, todos os dias tropeçávamos nele fosse pelo atrevimento de responder mal à Delaidinha ou à Dolorezinhas, por torturar moscas, por ter puxado os cabelos a uma amiga ou ter andado à bofetada com um vizinho. Havia o caminho certo e o errado, a minha mãe não iria ceder no que considerava correcto, no modo adequado de educar. A falta de respeito, dizia-o vezes sem conta, não ia ganhar.
Apesar de ter chorado a sua disciplina, hoje agradeço-lhe a inflexibilidade, a dureza de princípios e pergunto muitas vezes o que diria deste tempo que vivemos, de crianças mimadas e pais sem autoridade, de políticos que insultam em público e de outros que penduram relógios de cozinha ao pescoço.»
Marta Caires
Revista Mais (Diário)
09.11.2008
Quer queiramos quer não, os jovens hoje são diferentes, como foram sempre, e a sociedade é diferente, como sempre foi. A evolução e a transformação não cessam. Os pais têm de ter autoridade, não podem ser uns "bananas" como dizia o pedagogo e mentor da Escola da Ponte, José Pacheco, mas talvez tenham de afirmar a sua autoridade e disciplinar de outras formas.
Contudo, não se devem sentir inseguros ou indecisos. Têm de actuar e educar, mesmo que aplicando receitas antigas, nalguns casos. Como me disse uma vez um pedagogo, se tivermos de exagerar nalguma coisa, exagere-se na disciplina e não no afecto.
quinta-feira, novembro 13, 2008
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