domingo, outubro 23, 2005

3. «Quando todos passam algo vai mal.» É verdade?

«Quando todos passam algo vai mal» foi título de um suplemento no Diário de Notícias do Funchal (13 Outubro 2005) intitulado “Especial Gala de Mérito”, uma iniciativa da Associação Insular de Geografia, que resolveu premiar o mérito do desempenho escolar, com a presença do Exmo Sr. Director Regional da Educação.

O estímulo à excelência e ao reconhecimento do esforço são justos. No entanto, há que ler o que está para além de expressões como “quando todos passam é porque algo vai mal” (Joaquim Sousa) ou “contra a corrente do medíocre”. Há chavões do senso comum e lógicas simplistas que ocultam muita coisa e impedem as pessoas de pensarem um pouco mais sobre o assunto, de forma a desvendar a complexidade.

EM PRIMEIRO LUGAR
Condenamos nós o nivelamento por baixo, o facilistismo, a visão da pequenez, da mediania, da mediocridade, da uniformidade de percursos, que grassam mais na nossa sociedade do que na própria escola, é bom não esquecer.

Concordamos que os alunos não devem passar sem saber (a passagem administrativa constitui já um acto de exclusão).
Mas discordamos da visão de que é impossível aos alunos, nomeadamente na escolaridade obrigatória, atingir os objectivos mínimos para assegurar a passagem nas disciplinas e no ano escolar.
A escola reconhece o seu fracasso, o seu insucesso, a sua falta de mérito, quando diz que não consegue assegurar o sucesso mínimo inerente à passagem nas disciplinas e de ano a todas as crianças e jovens. Não estamos a falar de sucesso traduzido em fazer de todos os alunos doutores. Estamos a falar apenas da passagem de ano. Nós não achamos que seja mau todos passarem de ano. Mau é passarem sem ferramentas para a vida.

Mesmo que se admita que seja impossível que todos atinjam o nível mínimo de sucesso da passagem de ano, não valerá a pena caminhar no sentido de, ao menos, atenuar o insucesso dos que não passam? Não passar é uma condenação? As pessoas não evoluem? As pessoas não podem aprender mais? É a escola a reconhecer as suas incapacidades de novo?

Serão os alunos de sucesso (os melhores) ou os filhos do insucesso que precisam de mais motivação, confiança e auto-estima?

Esta visão desencatada, sem sonho, sem utopia, sem esperança de fazer mais e melhor pelos que não têm as mesmas oportunidades para (também) alcançarem algum sucesso nada tem a ver connosco no projecto Fazer +, que acreditamos que é preciso caminhar no sentido (quem sabe um dia lá chegaremos) de assegurar sucesso escolar e educativo para todos os alunos (que não precisa de ser o mesmo tipo de sucesso igual para todos) além do acesso ao sistema escolar. Acreditamos numa escola inclusiva e não de exclusão dos que carregam um sinal menos.

Depois de esclarecido este ponto há que desmontar certos conceitos e fraseado do senso comum subjacentes à frase "quando todos passam é porque algo vai mal":

1º Subjaz uma visão determinista e elitista em que uns estão predestinados e programados, até geneticamente no entender de alguns, para obter sucesso e mérito. E estes é que merecem ser apoiados e acarinhados.

2º Subjaz a ideia que o sucesso de uns implica o não sucesso de outros, isto é, a exclusão dos restantes: é mau quando todos passam, pois.

3º Subjaz uma visão competitiva da educação, em que uns correm para o sucesso contra os outros, em detrimento dos outros (“quando todos passam algo vai mal”, como se o sucesso de um determinado aluno tivesse de implicar a não passagem dos outros.) Em vez do sucesso resultar de uma competição comigo mesmo no sentido de dar o meu melhor (e recorrendo a ajuda se necessário) e ficar satisfeito com o sucesso seja qual for o nível atingido, estamos a fomentar a competitivade pura e dura na escola e entre alunos.

4º Subjaz uma confusão entre a passagem de ano e o nivelar por baixo. Não se está apenas a dizer que nem todos devem atingir determinado nível de sucesso (mérito). Está-se a dizer que nem o nível de sucesso mínimo que assegura a passagem de ano ou de disciplina deve chegar a todos os alunos. O discurso do nivelar por cima é só para alguns enquanto o nivelar por baixo serve bem aos restantes. Como se o sucesso de uns não permitisse (ou não devesse permitir) o sucesso mínimo da passagem de ano dos restantes.

5º Subjaz a visão do bom professor como aquele que mais retém alunos. Se algo vai mal quando todos passam, algo irá bem quando muitos não passam, depreende-se.

6º Subjaz a ideia que na escola nem todos os alunos devem atingir os mínimos que lhes assegurem a passagem de ano.

7º Subjaz uma atitude de concordância com o modelo de escola de selecção e reprodução sociais.

8º Subjaz uma visão fatalista perante a selectividade e reprodução sociais na escola, bem como face ao insucesso escolar. A não passagem de ano não é só uma fatalidade como ascende a uma espécie de necessidade, para provar que nem tudo vai mal.

9º Subjaz essa visão tecnocrática e sem esperança que esquece que muitos alunos com ajuda (percursos diferenciados mas sem discriminação) conseguem atingir sucesso escolar e educativo efectivo (e não apenas para os colocar artificialmente mais depressa fora da escola em vias paralelas de exclusão). Acreditar que o sucesso escolar e educativo está ao alcance de todas as crianças e jovens deveria ser um imperativo ético na profissão docente e na educação: nunca deveríamos desistir dos nossos alunos. Sobretudo dos que carregam o sinal menos.

10º Subjaz a ideia que à escola interessa o sucesso escolar que se avalia no exame, esquecendo-se e desvalorizando-se todos os outros aspectos (méritos) educativos.

11º Fará sentido dizer afirmar que "quando todos passam algo vai mal" num país e numa região com os níveis de abandono e insucesso escolar que nos envergonham? Não estaremos a ver tudo ao contrário? Não há aqui um equívoco?

12º Haveria que reflectir sobre o conceito de bom aluno. Não será redutor limitar a selecção dos melhores apenas com base nas notas escolares (sucesso escolar)? Será melhor aluno aquele que tem nota máxima em Ciências e fora da sala de aula não respeita os animais ou a natureza ou aquele que, embora não tendo as melhores notas, no mundo fora da sala de aula cuida dos espaços, não atira lixo para o chão, preocupa-se com os outros seres vivos e o meio natural?

13º Haveria que saber que os alunos não têm todos as mesmas oportunidades. Se a escola se concentrar apenas ou sobretudo nos melhores, menos oportunidades têm os outros alunos, mais acentuamos a desigualdade de oportunidades no acesso ao sucesso escolar e educativo. A escola, com a função social que tem, deve limitar-se a reproduzir as desigualdades sem a tentar atenuar, equalizar?

14º Há ainda um dado a mencionar. Não se pode esquecer que há uma classe média profissional e bem estabelecida que deseja a todo o custo assegurar um lugar ao sol para os seus filhos. Um bom emprego, uma boa carreira exigem altos níveis de sucesso escolar. Por isso, esse cenário de todos passarem não interessa nada. É mais concorrência... “Quando todos passam algo vai mal”, pois claro.

Daqui decorre UMA PERGUNTA:

E se fosse um filho nosso que carregasse um sinal menos por qualquer razão (existem muitas possíveis) e não passasse na escola? Continuar-se-ia a dizer que algo vai mal quando todos passam? Ou dir-se-ia que algo vai mal, até colocando os respectivos docentes em causa e sabe-se lá mais o quê e quem, porque o meu filho não passa?
É tudo muito fácil e bonito quando o insucesso escolar é para os outros, para os feios, porcos e maus, como diz Sérgio Niza, e nunca para os nossos. Quanta parcialidade... (Quantos filhos de médicos, professores, advogados, juízes, gestores, economistas, entre outros, não passam de ano? Tem dificuldade em encontrar um exemplo, não tem? Será por acaso?)


POR FIM O RELATÓRIO DA OCDE (Educação) 2005
“Schools tend to reproduce the existing social arrangements”
Escolas tendem a reproduzir a estratificação social existente

É um indicador analisado no relatório da OCDE em 2005, que confirma aquilo que acima já foi salientado, no sentido de que muitos dos alunos que não passam e não atingem determinados níveis de sucesso escolar por sua total responsabilidade, mas por factores, nomeadamente sociais, que lhes dificultam o percurso escolar, vedando-lhes o acesso às oportunidades que os demais usufruem.

«The results from PISA show that, in countries that separate students at an early age into schools of different types, students’ social background tends to be relatively strongly related to their performance.
Disadvantaged students are more likely to be placed in low status schools with less demanding curricula and so lower expectations of their learning, and then to end up with relatively poor performance.
Socially advantaged students are more likely to be placed in high status schools with demanding curricula and then to end up with relatively high quality performance.
In that sense, schools tend to reproduce the existing social arrangements. In countries that keep students together in comprehensive schools, the relationship between social background and educational performance is weaker, though not absent.
The weaker relationship suggests that schools are making some difference for the next generation to existing social arrangements, rather than reproducing them.»

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